Por Flávia Barbosa
Dessa vez, vamos falar do mais puro suco de Rio de Janeiro. Poderia começar a comparar essa série com “Succession”, “Game of Thrones” ou “Sopranos”, mas não seria justo. Porque aqui, meus caros, estamos falando da verdade nua e crua, com entrevistas surreais, onde nossos “personagens” da vida real falam abertamente (e com muito orgulho) dos seus grandes feitos.
É inacreditável a franqueza com que muitos resolvem falar sobre suas vidas, sobre o submundo que nem é tão sub assim, porque no Rio de Janeiro, meu irmão, é tudo escancarado. Só não vê quem não quer. Estou aqui meio que em devaneio, tentando começar a descrever o que acontece na série “Vale o Escrito”.
Por que muitos comparam esse seriado com os que eu citei anteriormente?
Porque aqui temos: traições, vingança, assassinatos, brigas em família por hierarquia, poder e dinheiro.
O diretor Ricardo Callil disse que as histórias de sucessão familiares muito violentas são o coração da série. E o público aprovou e ficou envolvido tanto quanto se envolve com séries ficcionais. Mas como tudo isso começou?
A parte bonitinha da história é só o começo mesmo: o Barão de Drummond resolve criar em 1892 o jogo do bicho para angariar fundos para o zoológico de Vila Isabel. Mas as coisas saem de controle e o jogo é perseguido e considerado contravenção. Contravenção gera penalidade mais branda, que gera uma abordagem mais tolerante das autoridades, que na verdade estão em sua maioria ligadas ao jogo. Políticos e policiais estão envolvidos, afinal, as bancas precisam de proteção, supervisão e de vez em quando execução.
Com a polícia e os políticos na folha de pagamento, temos a continuação das operações asseguradas. Ou seja: lavagem de dinheiro, corrupção, coação etc, são, normalmente, ignorados.
Como vemos, esse “crime” tem que ser organizado. Pois então nos anos 70 é criada uma cúpula do jogo do bicho, para dividir territórios, criar regras e chegar a acordos, estipular preços a serem cobrados e premiação distribuída. Muitos banqueiros do jogo como Rogério de Andrade, Capitão Guimarães, Anísio e Maninho são citados, mas a série resolve focar nas guerras das famílias Garcia e Andrade, com uma abordagem muito boa que entretém tanto quanto uma novela das nove.
Se houvesse uma premiação para melhor personagem eu daria com certeza para o senhorzinho de noventa e poucos anos de idade conhecido por Piruinha, o banqueiro que aparece bem tranquilo tomando sua cervejinha, rodeado de mulheres, distribuindo presentes na comunidade ou doces de São Cosme e Damião. Sim, mulheres e comunidade. O que nos leva a ligação do jogo do bicho com o maior espetáculo da terra: o Carnaval do Rio de Janeiro. Onde os banqueiros amam desfilar e aparecer sob os holofotes, já que nada mais são do que os mecenas das escolas de samba. Até aí, isso não é segredo para ninguém. Eles são muito amados nas comunidades e é engraçado essa ambiguidade, quando muitos ganham a vida com a fábrica do Carnaval que é sustentada pelo jogo. Que parece ser inocente, mas não é bem assim. Então o ilícito é acolhido e rejeitado ao mesmo tempo. Voltando a falar da cúpula, que agora é chamada de “velha cúpula”, um de seus cocriadores, o terrível Capitão Guimarães, afirma que a milícia só entra no jogo após sua morte. Mas não é que a “nova cúpula” discorda?
Quem se lembra do ex-BOPE Adriano da Nobrega? Segundo sua viúva, o que Adriano mais gostava de fazer como policial era torturar, passar dias com “donos de morro”. Mas talvez Adriano tenha se entediado e passa a prestar serviços para a “nova cúpula”. Mas ele presta serviço demais. Sabe demais. Torna-se perigoso demais. O miliciano é morto após grande perseguição que acaba na Bahia em 2020. Muitos tinham interesse na sua morte, porque se fosse preso e fizesse delação premiada, mais da metade da polícia do Rio de janeiro ia presa com ele. Ele ia falar tudo: sobre o caso Marielle Franco, sobre pistolagem, o porquê de seus familiares fazerem parte do gabinete do atual Senador Flávio Bolsonaro e muito mais.
Então eu pergunto: por que você ainda não assistiu “Vale o Escrito”? Provavelmente a melhor série-documentário lançada em 2023, e vai rolar segunda temporada, que espero que continue contando com a brilhante narração e direção artística de Pedro Bial.
E para finalizar bonito: “Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo. E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha apenas um. Mas que tenho eu com isso? ”- Fiódor Dostoiévski – “Um Jogador”.