A missão de Airon Martin, diretor criativo à frente da Misci, vai muito além de criar roupas bonitas, bem feitas e de qualidade. Claro, suas peças são tudo isso. Mas o que ele realmente quer é fazer as pessoas – para começo de conversa, os próprios brasileiros – reconhecerem o valor da moda nacional. Valorizando, principalmente, as pessoas que fazem ela acontecer.
Essa premissa chegou ao ápice de sua expressão na coleção “Valor Latino”, celebrada em uma festa para convidados da marca na última sexta-feira (27.10) no bar flutuante da Heineken, em São Paulo, onde CHNews conversou com o estilista sobre como exatamente ele enxerga o valor latino e o panorama atual da moda brasileira, passando pelo problema com a comunicação feita por revistas e influenciadoras. Para encerrar, ainda deu spoilers sobre sua nova marca homônima que será lançada em novembro de 2024.
Leia a conversa abaixo:
O que significa valor latino pra você e como você expressou isso nessa coleção?
É se entender como latino-americano, acho que o brasileiro tem dificuldade. Acho que é uma questão também de idioma. Por não falar espanhol, a gente se tira do latino. Só nos entendemos como latinos quando vamos para Europa e Estados Unidos e somos vistos assim. A gente não é europeu nem americano e por isso sofre essas consequências de um continente que foi e é explorado por Estados Unidos e Europa, que tiram toda nossa riqueza.
O brasileiro não tem noção do quanto a nossa pobreza gera a riqueza das grandes economias. Então, era principalmente isso que eu queria falar nessa coleção. Acho que o recado foi dado. A Misci, mais do que roupa, é uma marca de moda e consegue trazer essas reflexões para quem nos acompanha. Cada dia mais nossa voz tem sido ampliada, é isso que eu quero. Não quero só fazer roupa bonita. Eu sei que a gente faz o melhor da roupa possível de se fazer no Brasil, a melhor matéria-prima, a melhor mão de obra. Mas é impactar a sociedade, o consumidor que não tem cultura. Infelizmente, a renda no brasil está concentrada em um dinheiro que sempre usou a grife internacional de atalho. Vou me vestir de Gucci porque se eu me vestir de Gucci eu não preciso adquirir cultura e educação.
A Misci tem trazido esses questionamentos para a sociedade, para o nosso cliente, e tem dado certo. Esse era meu objetivo, e a gente tem conquistado isso a cada dia. Ninguém é perfeito, temos feito o que consideramos o melhor. Esse evento sempre foi um sonho para mim, não é só apresentar roupa, é apresentar as pesquisas brasileiras, a matéria prima do BeLEAF, novo material sustentável da Nova Kaeru à base de plantas, empresa que foi tão importante no desenvolvimento do couro de Pirarucu, a Terpol, que tem feito um trabalho incrível com plástico sustentável de base alimentar com borracha da seringueira.
É mostrar que o Brasil, além de ser capaz de fazer peças muito bem feitas e bem acabadas, é berço de uma pesquisa tão pouco valorizada pelo brasileiro. A Terpol, por exemplo, é uma empresa que está fazendo muito sucesso lá fora, a gente iniciou a venda e o desenvolvimento de produtos junto com eles no Brasil e as pessoas lá fora estão pirando. O brasileiro não sabe o que é. As revistas de moda não sabem o que é a indústria, quem está por trás da indústria.
Eu tenho várias amigas influenciadoras. Acho que é importante a influência, só que a influenciadora precisa ter consciência do que está comunicando porque essa comunicação rasa a gente não aguenta mais. Por isso, hoje a gente está procurando valorizar o que precisa ser valorizado, que é o pesquisador, a costureira, mão de obra, modelista, stylist, quem realmente está por trás e faz a moda acontecer no Brasil. Isso é valor latino.
Você inclusive chegou a levantar esse questionamento no seu Instagram, dizendo que temos muitos comunicadores de moda no Brasil, mas está na hora de olhar para quem de fato faz a moda acontecer.
Exatamente, e quem entende o que é a moda, porque a moda não é só look do dia. O look bonito é um pequeno reflexo da moda, mas a moda por trás é muito grande. Vejo até pelos estilistas brasileiros, não tem essa curiosidade de entender quem está por trás da indústria. Eu amo a indústria porque a indústria é gente, eu amo gente. Por mais tecnologia que exista, a indústria é feita por gente. Então, acho que valor latino é valorizar primeiro a nossa gente. Se entender como os países vizinhos, com potência. O algodão peruano é o melhor do mundo, passou o algodão egípcio. O Brasil, infelizmente, não tem mais aquele algodão de fibra longa como a gente tinha nos anos 1980. O Peru está aí para nos entregar esse algodão. Isso é valor latino. Entender nosso valor, o valor dos nossos irmãos.
Qual a proposta de sua marca homônima que será lançada em novembro de 2024?
Vou dar um spoiler: a Misci é uma parte da minha desconstrução, a Airon Martin é a marca que mexe comigo de uma forma ainda mais profunda. E não é profunda no sentido de pesquisa, é profunda no sentido emocional mesmo. Em termos de pesquisa, o que eu faço na Misci será aproveitado na Airon Martin porque é uma pesquisa séria e profunda, mas quando se fala de processo criativo e profundidade… Doeu mesmo, sabe? No sentido de quem eu sou como criador, a Airon Martin entra num espaço que a Misci não tem como entrar.