O Masp – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – apresenta, de 23 de fevereiro a 9 de junho de 2024, a mostra “Gran Fury: arte não é o bastante”, que ocupa a galeria localizada no 1º subsolo do museu. Com curadoria de André Mesquita, curador, Masp, e assistência de David Ribeiro, supervisor, Masp, a exposição reúne 77 obras, entre elas fotocópias e impressões digitais sobre papel. Os trabalhos discutem os limites e os alcances das campanhas gráficas do coletivo Gran Fury, bem como a ideia da arte como estratégia no campo ativista, impulsionado por pessoas queer, para ampliar a consciência sobre o HIV/Aids.
Gran Fury (Nova York, 1988-1995) foi um coletivo de artistas considerado referência para as práticas de ativismo artístico das décadas de 1980 e 1990, que emergiu a partir da organização ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power) [Coalizão da Aids para libertar o poder], composta por indivíduos e grupos de afinidade dedicados a tornar criticamente público o silêncio e a negligência do governo dos Estados Unidos em relação ao HIV/Aids. Gran Fury produziu campanhas gráficas e intervenções públicas em torno das questões relacionadas à crise do HIV/Aids, servindo visualmente ao ACT UP em protestos e ações de desobediência civil. O coletivo encerrou suas atividades em 1995, e seu arquivo encontra-se na New York Public Library.
Em boa parte de sua trajetória, o Gran Fury contou, em sua formação, com Avram Finkelstein, Donald Moffett, John Lindell, Loring McAlpin, Mark Simpson (1950-1996), Marlene McCarty, Michael Nesline, Richard Elovich, Robert Vazquez-Pacheco e Tom Kalin. O grupo se autodescrevia como “um bando de indivíduos unidos na raiva e comprometidos a explorar o poder da arte para acabar com a crise da Aids”. Seus membros recusavam-se a se assumir como artistas ou a aparecer como criadores individuais e desejavam escapar dos espaços de arte consagrados.
O título da exposição do Masp Arte não é o bastante, se inspira na frase “With 42,000 Dead, Art Is Not Enough” [Com 42 mil mortos, arte não é o bastante] (1988), de autoria do coletivo. A sentença surgiu quando a instituição independente de arte experimental e performance The Kitchen, em Nova York, convidou o coletivo para fazer a capa do calendário do espaço, que respondeu com um pôster contendo a declaração, seguida da conclusão “Take Collective Direct Action to End the Aids Crisis” [Engaje-se na ação direta e coletiva para acabar com a crise da Aids].
“O Gran Fury é parte de uma história ativista do uso politizado das ferramentas de comunicação e da subversão de imagens e discursos dominantes, abrindo território para o que na década de 1990 tornou-se conhecido entre coletivos de arte ativista e movimentos sociais como ‘mídia tática’, que é a produção de um novo tipo de estética por grupos e indivíduos oprimidos ou excluídos da cultura geral, trabalhando com formas expandidas de distribuição cultural e intervenção semiótica nas ruas, valendo-se de diferentes suportes visuais”, elucida o curador.
Entre as ações produzidas pelo grupo está a criação “The New York Crimes” (1989), que consistiu na impressão de milhares de exemplares falsos de um jornal de quatro páginas com textos do ACT UP, contendo suas próprias notícias e gráficos densos. Nessa obra, o grupo, mimetizando os elementos gráficos da capa do “The New York Times”. O “The New York Crimes” corrigia a identidade e as informações equivocadas da cobertura do tradicional jornal nova-iorquino sobre a doença, por exemplo a de que o controle do HIV já estava estabilizado. Na época, Gran Fury e ativistas do ACT UP saíram pelas ruas de Nova York durante a madrugada, abriram as caixas do “The New York Times”, retiraram os exemplares e substituíram as primeiras páginas com o jornal falso.
“Em Kissing Doesn’t Kill” [Beijar não mata] (1989-90), o Gran Fury desviou o multiculturalismo corporativo das conhecidas campanhas da empresa italiana de roupas Benetton, subvertendo seus códigos visuais e semânticos e a sua sedução visual, para exibir fotografias de três casais inter-raciais se beijando. O pôster foi instalado como um painel nas laterais de ônibus e nas estações de metrô em São Francisco, Chicago, Nova York e Washington DC, nos Estados Unidos. Sua imagem, replicada também em vídeos curtos produzidos pelo coletivo, não vendia um produto, mas desafiava a interpretação equivocada do beijo como comportamento de risco, uma vez que, naquela época, a saliva era vista como um fluido supostamente capaz de transmitir o HIV.
“O outdoor não publicitário de ‘Kissing Doesn’t Kill’ efetua o que, na década de 1990, popularizou-se como Culture Jamming [Interferência cultural] por meio da subversão, manipulação ou rompimento simbólico das mensagens publicitárias na mídia e no espaço urbano”, explica Mesquita.
A garantia do cuidado e do respeito a todas as pessoas com HIV foi endereçada em um cartaz com a frase “All People With Aids Are Innocent” [Todas as pessoas com Aids são inocentes] (1988), quebrando o paradigma moral de que algumas pessoas mereceriam o HIV/Aids mais do que outras. O cartaz do Gran Fury determinava uma mudança de pensamento imediata da sociedade para respeitar, sem hierarquias, todas as pessoas que convivem com o HIV/Aids, as quais devem ter o direito de receber cuidados e assistências igualitárias.
Segundo o curador, “dizer que ‘a arte não é o bastante’ não significa abandonar permanentemente a arte em favor da militância, ou apontar a ineficácia de uma prática artística para a transformação social. Ao contrário, a declaração do Gran Fury propõe que já não basta mais fazer uma arte sobre a crise, mas que momentos de crise são também momentos revolucionários de imaginação radical e de confrontação de sistemas hegemônicos e opressores”. “Sua obra gráfica nos provoca a pensar sobre a necessidade e a urgência de artistas, ativistas e agentes culturais se articularem como força política solidária em direção à ação direta, caminhando junto a movimentos contestatórios”, conclui.
“Gran Fury: arte não é o bastante” integra a programação anual do Masp dedicada às histórias da diversidade LGBTQIA+. Este ano a programação também inclui mostras de Francis Bacon, Mário de Andrade, Masp Renner, Lia D Castro, Catherine Opie, Leonilson, Serigrafistas Queer e a grande coletiva Histórias da Diversidade LGBTQIA+.