Ela queria ser jornalista, adora escrever. É inteligente à beça e se envolveu mais diretamente com moda aos 45 anos de idade. Mônica Sampaio, a cabeça por trás da Santa Resistência, acabou se formando em engenharia elétrica e atuou na área muito antes de se tornar a estilista que é hoje. Ela também foi militar, e chegou a ser chefe da engenharia do Hospital Central do Exército (HCE). “Aqui no Rio de Janeiro, durante um período, todos os projetos passavam por mim. Engenharia biomédica, engenharia em geral. A partir da engenharia elétrica, eu comecei a exercer engenharia biomédica, um pouco de engenharia civil também”, conta.
Apesar de trabalhar com engenharia, Mônica sempre investiu em sua forma de se vestir, bolando modelos, comprando tecidos e fazendo suas roupas. Depois de sua carreira longeva no mundo da engenharia, resolveu recomeçar e apostar em uma marca de moda para dar continuidade a seu objetivo: a Santa Resistência. “Em um determinado momento da minha vida, me deu um clique do que eu queria vestir, e não encontrava. Então, pensei de que forma eu iria transformar isso? Buscar fora ou eu iria construir a minha moda? O meu processo com a moda foi esse.”
A virada para o mundo fashion aconteceu de forma intuitiva, nessa construção de suas próprias roupas. “Durante a engenharia, eu sempre recebi muitos elogios pela forma como me vestia. Trabalhei numa área industrial, na Varig, onde 80% eram homens, trabalhava de jaleco, mas por mais que eu usasse aquele jaleco, eu estava sempre antenada com algo que estava ocorrendo. Eu gostava muito de cores, de estampas, e coordenava isso muito bem.”
Como conta, a designer nunca teve ninguém convivendo com ela que fosse muito próximo da área de moda. Não conhecia nem style, nenhum designer. O que tinha de mais próximo era a costureira ou o alfaiate do bairro, mas a profissão de costureira não era o que ela almejava. “Em toda a minha criação na moda, sempre tenho uma narrativa. Aí vem aquela jornalista frustrada que ficou lá atrás, olha ela, quando tinha 15, 16 anos. E ela ressurge assim, com força total. Eu gosto de contar histórias. Eu digo que eu não faço moda, eu conto histórias.”
Depois do sucesso de seu desfile na última edição do São Paulo Fashion Week, Mônica agora aposta as fichas em patrocínio para o próximo desfile, um ponto fixo para a Santa Resistência e se abre para o mercado internacional. “Acabei de concluir o plano de qualificação para exportação, então isso é um projeto já para 2025.”
Leia a seguir o papo que CHNews teve com a estilista via Zoom.
Como nasce a Santa Resistência?
A Santa Resistência veio de uma inquietação, de dois lugares, de necessidade. Eu já estava em outro patamar, porque já havia conquistado o meu lugar, massageado o meu ego de uma forma profissional. Como engenheira, eu tinha conquistado aquilo que eu queria, mas eu estava perdendo o outro lado, que era a qualidade de vida. E a minha filha foi crescendo nessa rotina, eu solteira, trabalhando, entrando 6h40, fardada no quartel, e chegando em casa às 21h, porque praticamente era uma das últimas a sair de dentro do HCE, porque como chefe de setor, eu tinha que estar ali quando o diretor resolvesse fazer a última reunião do dia. Então não tinha hora. Fui perdendo muito tempo. Não tinha tempo na vida da minha filha. E ela veio crescendo naquilo ali, sentindo necessidades, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), com deficiências escolares. Eu precisava fazer alguma coisa. Foi quando eu disse, ôpa, agora é a hora de mudar. Aos 45 anos rompi uma carreira e fui para outra. Com a cara e a coragem, fui empreender. Porque queria essa qualidade de vida, esse momento dentro de casa, dando mais atenção. A minha mãe já estava cansada, a minha filha já tinha mais necessidades devido a uma série de fatores.
E apostou direto na moda?
Meu primeiro empreendimento não foi na moda. Eu fui empreender como engenheira. Aí foi a grande virada mesmo. Porque aí eu fali completamente. Perdi tudo. A moda já era algo que eu já gostava. E pensei, vou entrar, vou começar. E eu não sabia nada. Continuava não tendo nenhuma referência, nenhum amigo. Comecei baixando fotos do Google, estampando em blusas, em vestido. E deu muito certo. Então fui buscar, conhecer o mercado. Porque eu, já com quase 50 anos, tinha outras prioridades. Busquei o Sebrae, para entender como empreender na moda. Entrei para o Sebrae Moda Afro. Fui selecionada como uma das 200 marcas no Brasil de afro-empreendedores. Eu fui selecionada entre as 20. Isso foi no início. De lá, fui para São Paulo Fashion Week e estamos aqui.
O nome Santa Resistência carrega algum significado especial para você?
O que ele representa? Ele carrega dois lados meus. Essa minha espiritualidade, essa fé que eu tenho muito grande, que digo ser uma fé muito espiritualista, muito brasileira, com códigos afro-brasileiros, com códigos do Candomblé. Mas sendo criada em uma família tradicionalmente católica. Então, esse lado santo eu queria trazer também, a minha religiosidade. Queria contar isso. Por que que a afro-brasileira é tão marginalizada? Tão escondida? E se eu tenho orgulho disso, por que não trazer na minha roupa? E a resistência é exatamente você fazer uma moda no Brasil. Tem que existir uma resistência. A Santa Resistência traz isso. A minha fé em continuar fazendo algo no que eu acredito, que é moda. E é muito difícil. Consertar avião é a fichinha.
De que forma a ancestralidade africana está presente nas suas criações?
Ela vem muito desse resgate, dessa busca que eu trago. Buscando entender onde eu me encaixo em todo esse sistema brasileiro. Trouxe uma coleção falando do Recôncavo Baiano. Somos oriundos da cidade de São Félix, Cachoeira (BA). Eu tenho uma parente minha aqui, que é da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. Que fica em Cachoeira. Trouxe também outra coleção falando sobre as três graças do Brasil, onde eu conto a história de Maria Filipa, Maria Quitéria e Catarina Paraguaçu, que são três figuras femininas que lutaram pela independência do Brasil. São três mulheres importantíssimas. A Maria Filipa era uma negra, marisqueira do Recôncavo Baiano. Lutou à frente de mulheres, de prostitutas. A Maria Quitéria se vestiu de homem e foi lutar também pela independência. E coisas que não foram contadas. Então essas são histórias afro-brasileiras que trago para a minha moda. Através da estampa, através de pesquisas de vestuário. É onde eu me realizo, fazendo pesquisa. A mais recente coleção, “Manifesto Ancestral”, foi mais afro-futurista. Que eu quis trazer toda essa riqueza da tribo Maasai, da Nigéria, da Tanzânia e também da região de Zanzibar. Como se eles estivessem aqui no Brasil no futuro.
Como que você escolhe os materiais para garantir a sustentabilidade das peças? Você tem uma preocupação com isso?
Tenho essa preocupação. Faço parte do movimento de Sou de Algodão. Então é algo que eu quero trazer para a minha marca, porque quero falar disso. A sustentabilidade tem que estar em todos os campos. O meu consumidor tem que entender que ele está comprando de uma marca sustentável. Já começo com o filtro do Sou de Algodão, que já nos dá essa facilidade. Dentro do movimento não tem só as marcas de roupas, tem as indústrias têxteis. Então fica mais fácil.
Você trabalha com comunidades e coletivos de artesãos. Qual a importância disso na cadeia produtiva da sua marca?
É importante. Eu até comentei sobre isso numa palestra para meninas com medidas socioprotetivas. Falei sobre a devolução que a gente dá para a sociedade. Mas a gente recebe muito mais. Quase toda a produção da Santa Resistência (90%) é feita dentro do Complexo da Maré. Onde todo o entorno ali é complicado, muito difícil. Onde o tráfico domina. Onde meninas e mulheres não veem uma solução. Só que muitas delas ali são chefes de família, são o sustento. O coletivo foi criado pelo Beto Gomes dentro da Maré. Porque não adianta você tirá-las para levar a um lugar longe já que os filhos estão ali, tem de haver a proximidade para levar as crianças para a escola. Eu sou uma das marcas que o coletivo atende, já estou há três edições. Inclusive está indo agora uma produção minha para elas. Acho que quando você faz isso, está oferecendo oportunidade de crescimento para o seu entorno. Se eu não olhar para o meu entorno, o que estou devolvendo para a minha sociedade como marca? Nada. Então eu procuro fazer esse trabalho. Mesmo nos locais mais difíceis, não deixo de dar trabalho, porque quando você dá trabalho para alguém, você esta dando dignidade.
Na indústria de moda atual, que mudanças você gostaria de ver?
Quando a gente fala de inclusão, de diversidade… É uma pergunta bem bacana. Porque a gente está passando por um momento de retrocesso. Parece que quando você fala de inclusão e diversidade já é séculos atrás, que passou esse boom, que é uma pauta esvaziada. Você já não vê mais interesse real nisso. A impressão que eu tenho é que a preocupação diminuiu. Hoje eu faço parte da SPFW, semana de moda mais importante da América Latina, em São Paulo. Na última edição, das 53 marcas, apenas três tinham estilistas negras. E se você for vir geral o backstage, style, fotógrafo, a presença negra é diminuída. Temos uma passarela homogênea, de modelos negras com rosto e corpo lindos, mas o bastidor é diferente. A moda para mim é paixão, se não for verdadeira essa sensação, estou fazendo algo errado.
Quais os principais perrengues para levar uma marca?
Meu perrengue hoje é um patrocínio. Uma marca que queira patrocinar um desfile da Santa Resistência. Sou mulher, negra, tenho 55 anos, sou hétero, careta, no máximo tomo cerveja, então é mais difícil, pois os patrocinadores apostam nas marcas que já estão em evidência. Então a minha grande dificuldade hoje é esse patrocínio.
Pensa tem ter uma loja física?
Eu tive uma loja em Ipanema, mas não tenho mais, nossas vendas são online. Entrei também para o Nordestesse (hub criativo que registra, amplia e fomenta a produção, as discussões e o talento de marcas e serviços de empreendedores nordestinos), que traz holofote para todas as marcas nordestinas. Eu me encaixo nisso.
Tem planos de expandir a Santa Resistência para o mercado internacional?
Sim, tenho planos, inclusive acabei de concluir o plano de qualificação para exportação, então isso é um projeto já para 2025. Eu quero ao menos participar de duas feiras para ver como funciona, entender como é o interesse pela Santa Resistência.
E o que podemos esperar para o futuro da marca?
Primeiro, que eu acho que é o mais urgente, é ter o nosso ponto fixo. O ponto, a casa real da Santa Resistência, onde eu gostaria de criar alguns projetos ali dentro, de capacitação, de modelagem. Tenho uma modelista maravilhosa, que está comigo também desde que iniciei na moda, que é a Railda, ela é figurinista e modelista, e a gente conversa muito sobre e vê que modelista também é uma profissão que, se bobear, pode se extinguir, e os jovens não encaram que a moda te abre um leque de possibilidades, de realmente você mudar a sua vida através do trabalho, de ter uma profissão voltada para a moda. Quero levar isso para alguns lugares, de manualidades também, falar mais um pouco sobre o crochê, sobre o fuxico, que é uma arte também muito forte no Recôncavo Baiano. Costumo dizer que eu, Mônica Sampaio, sou uma possibilidade, da mesma forma que no passado eu não me enxerguei, eu não tinha nenhum tipo de referência como uma designer, uma pessoa negra, podendo estar na semana de moda, sendo possível aquela realidade em trabalhar com moda. Hoje eu sou essa possibilidade. Então eu quero que os jovens e quem esteja iniciando olhem para mim e vejam: eu posso fazer isso também. É uma chance também de mudança de carreira. Como eu disse, mudei tudo aos 45, então é possível.